quinta-feira, 30 de abril de 2015

EIS QUE ESTOU CONVOSCO ATÉ À CONSUMAÇÃO DO SÉCULO - PARTE 2



"Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século " (Evangelho segundo S. Mateus 28:18-20).
Pequenos equívocos podem nos furtar tremendos consolos. Quem leu a publicação anterior, com o mesmo título, deve ter questionado: Que o título tem a ver com o assunto?
É que eu quis abordar primeiramente a presença constante dos mistérios em nossa vida, para depois prosseguir em minha reflexão. De fato, muita coisa é simplesmente inexplicável. Mas que doçura há nos mistérios! Quanta doçura encontramos nas palavras acima, em que Jesus promete estar conosco até à consumação do século!
Ele partiu para o Pai. Enviou-nos o Espírito Santo, como consolador e auxiliador, sem o qual jamais chegaríamos ao conhecimento do Pai. Jesus está junto ao Pai, intercedendo continuamente por nós. Mas algo ele faz além: está verdadeiramente conosco, EM PESSOA!
Sentiu a diferença? Quando você ora, tem ao seu lado, bem próximo de você, dentro de você, o próprio Jesus EM PESSOA!
Em meio a tanta miséria, esse consolo é tudo para nós! Cristãos sendo severamente perseguidos, expulsos de seus países, pagando com a vida a fé que têm. Quantos assassínios, massacres, deslocamentos o mundo tem presenciado neste século! Não devemos dispensar nenhum consolo que a fé pode nos dar, por menor que seja. Que dizer então deste tão imenso consolo?
No século V da era cristã, houve um clérigo muito importante, bispo de Constantinopla, chamado Nestório, que começou a ensinar uma doutrina estranha. Na verdade, nada de estranho à nossa razão, onde o perigo sempre habita. Em todos os aspectos, cheíssimo de razão! mas nem por isso, correto em suas conclusões. Porque uma coisa é estar com a razão, outra muito diferente é estar certo, principalmente em se tratando de coisas espirituais.
Nestório acreditava que Jesus era verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Pouco antes, a heresia dos arianos havia sido rebatida pelo Concílio de Niceia. Vale lembrar que Ário negava a divindade de Jesus, atribuindo-lhe somente o título de Deus, na qualidade de seu representante no mundo. Algo muito racional, pois Jesus é homem, mostrou diversas vezes sua fragilidade humana, declarou estar sujeito ao Pai, foi morto e é inegável, com base nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, a existência de um só Deus. Portanto, Ário fez pleno uso de sua razão. Felizmente, nossos pais defenderam com bravura a doutrina de que Jesus Cristo não é somente homem, mas Deus, consubstancial ao Pai. A Bíblia está cheia de textos que deixam isso muito claro.
Mas como Jesus poderia ser Deus e homem? É escandaloso demais! Afinal aquilo que atribuímos a Deus, negamos ao homem. Deus é eterno, imutável, infinito, onisciente, onipresente, incriado. O homem, por outro lado, está sujeito ao tempo, é mutável, finito, tem conhecimento muito limitado, está restrito pelo espaço e é uma criatura. Como conciliar ambas as verdades? Fato inegável pelas Escrituras, mas de impossível compreensão.
"Ele (Jesus) é a IMAGEM do Deus invisível"; "pois nele (ou através dele) foram criadas todas a coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis"; "porquanto, nele, habita, CORPORALMENTE, toda a plenitude da Divindade"; "pois ele, subsistindo em FORMA DE DEUS, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens e reconhecido em figura humana" (S. Paulo).
Embora haja quem diga, e são muitos! que a doutrina da divindade de Jesus Cristo foi inventada pelo Concílio de Niceia, sinto muito em dizer que, se houve invenção, ela veio do próprio apóstolo S. Paulo, com coparticipação unânime de todos os outros apóstolos, especialmente de S. João. Jesus Cristo de fato é Deus e, se isso é uma mentira, quem mentiu foi S. Paulo, com a anuência dos demais apóstolos.
Então Nestório ficou matutando: "Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Concordo com isso! Também é uma só pessoa, não há como negar". Deveria ter parado por aí, mas infelizmente avançou: "Entretanto, jamais se poderá dizer que Maria é mãe de Deus, porque ela é mãe somente da humanidade de Jesus, já que a divindade, sendo eterna e incriada, não tem mãe".
Parece algo simples, sem consequência, mas essa negativa de Nestório valeu um concílio, na cidade de Éfeso. A questão é que Nestório foi vítima da razão ao dividir Jesus em duas pessoas: uma divina e outra humana. Segundo ele, não se poderia atribuir à humanidade de Jesus qualquer coisa que fosse exclusivamente de Deus. Com isso, estava partindo Jesus ao meio. Afinal, se uma natureza não se comunica com a outra, não há mais unidade.
Veja que esse equívoco de Nestório é muito atual. Até hoje muitos se escandalizam quando nós, luteranos, dizemos que Maria é mãe de Deus. Temendo a mariolatria, entram em contradição, exatamente a mesma de Nestório.
Quando afirmamos que Maria é mãe de Deus, nós nos baseamos na Bíblia. Santa Isabel profetizou: "Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém que me venha visitar A MÃE DO MEU SENHOR?" (Lucas 1:43). S. Paulo afirmou: "Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho (ou seja: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, consubstancial ao Pai), nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei" (Gálatas 4:4-5).
É óbvio que não queremos divinizar Maria ao atribuir-lhe a graça de ser mãe de Deus. Na verdade, desde o início, a intenção de quem assim confessava era demonstrar sua fé na divindade e humanidade de Cristo em uma só pessoa indivisa.
Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ele é o Verbo (Lógos) ou a Sabedoria de Deus, é essencialmente Deus, está com Deus, mas é homem como nós. Não podemos aqui imaginar duas naturezas justapostas, como dois livros, um ao lado do outro. Muitos imaginam a relação das duas naturezas de Jesus Cristo exatamente como dois livros de um box. Na verdade, as duas naturezas estão infiltradas uma na outra, fundidas na pessoa de Cristo, de maneira muito mais íntima e profunda que a união pessoal de corpo e alma.
Como afirmei em outra publicação, o Verbo de Deus, sendo Deus verdadeiro, Deus em essência, com todos os atributos divinos, a fim de nos redimir, assumiu a nossa humanidade de maneira permanente. Somente assim esse Verbo poderia representar-nos perante o Pai, sujeitar-se à Lei, padecer e morrer. Tudo aquilo que lhe era impossível, na qualidade de Verbo de Deus e Deus, tornou-se possível a partir do momento em que assumiu a nossa humanidade, de maneira mais íntima que a união entre pele e carne, entre corpo e alma.
Como se diz: ajoelhou, tem de rezar. Se confessamos que Jesus Cristo é Deus e homem em uma só pessoa indivisa, conforme nos atestam os evangelistas e apóstolos, temos de ir até às últimas consequências com isso. Não podemos parar pela metade. Não podemos deixar que a razão tome conta.
Nós, luteranos, fomos muito mal compreendidos, quando nos acusaram de pregar a mistura da essência divina com a essência humana, que é uma heresia antiga da Igreja, atribuída a Êutiques. Na verdade, o que nós ensinamos é o que a Bíblia e os pais da Igreja ensinam: Não há mistura das duas naturezas. A divindade continua sendo divindade. A humanidade continua sendo humanidade. Jesus Cristo não é um híbrido de humanidade e divindade. Entretanto, suas duas naturezas, embora diametralmente opostas, estão fundidas em sua pessoa de tal maneira que, nele, pode-se afirmar sem erro que Deus é homem e homem é Deus.
Após a encarnação do Verbo, não encontramos um texto sequer da Bíblia que nos mostre a divindade de Jesus atuando à parte de sua humanidade, nem o oposto. Em todos as passagens do Evangelho, Jesus é Deus e homem. Quando repreendeu a tempestade, andou sobre as águas, multiplicou pães e peixes, perdoou pecados e ressuscitou mortos. Quando disse: "Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra". Quando se transfigurou perante os discípulos Pedro, Tiago e João. Enfim, em todos os acontecimentos em que percebemos claramente a sua divindade em ação, ela agiu por meio de sua humanidade. Igualmente, quando sentiu fome, pesar; quando chorou, transpirou sangue; também ao padecer sob Pôncio Pilatos, em sua crucificação, morte e sepultamento, ali não estava a sua humanidade a padecer sozinha as suas carências. Deus estava com ela, padecendo junto. Aqui padecer é LITERAL!
É fácil atribuir divindade à humanidade de Jesus. Difícil é fazer o intercâmbio oposto, embora não haja nenhuma restrição a respeito na Bíblia. Muito pelo contrário, negar esse intercâmbio bilateral é dividir a pessoa de Jesus em duas partes.
É dito sobre Jesus Cristo: "Dessarte, matastes o Autor da vida" (Atos 3:15); "sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória" (1 Coríntios 2:8); "visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia" (Hebreus 6:6).
S. Pedro e S. Paulo deixam claro que não foi a natureza humana de Jesus Cristo que foi crucificada e morta, mas Jesus Cristo inteiro, homem e Deus, destacando inclusive sua divindade, para evitar erros a respeito: Autor da vida, Senhor da glória e Filho de Deus.
É muito simples chegar e dizer: Maria não é mãe de Deus, mas da natureza humana de Jesus. Entretanto, isso depois nos leva naturalmente à seguinte conclusão: Deus não pode morrer. Portanto, quem morreu na cruz não foi Deus, mas somente a natureza humana de Cristo.
Que consequências tais reflexões teriam para a nossa fé? Veja que Nestório parece não ter pensado tanto nas consequências, ao permitir que sua razão tentasse harmonizar verdades tão sublimes. Muitas vezes nós também não nos damos conta das consequências do que estamos ensinando.
Quando negamos a unidade da divindade com a humanidade, na pessoa indivisa de Jesus Cristo, e insistimos em dizer que algumas obras foram executadas pela natureza humana, enquanto que outras foram executadas pela natureza divina, como dois personagens de uma peça, chegamos ao primeiro prejuízo à fé: Não foi Deus quem morreu por nós; foi um homem. A obra em si não foi meritória, visto ter sido praticada por um homem. Deus Pai é que soberanamente atribuiu mérito a essa obra.
Isso é tão perigoso! Quer dizer que qualquer um de nossos mártires: S. Paulo, S. Pedro, S. Sebastião, Santa Felicidade e Santa Perpétua poderia ter expiado o pecado da humanidade, bastasse Deus Pai, em sua soberania, ter atribuído a essa obra humana o mérito necessário. Fico pensando: se assim fosse, por que Deus não permitiu a Abraão consumar o sacrifício de Isaque? Ele poderia muito bem ter atribuído mérito redentor a esse derramamento de sangue, poupando seu dileto Filho de tanto trabalho.
Está vendo para onde nos conduz a razão? Não é à toa que Dr. Martinho Lutero a trata de bruxa, porque ela nos enreda com seus argumentos e nos conduz a conclusões inconvenientes, perigosas até.
Jesus Cristo inteiro, Deus e homem, padeceu e morreu na cruz pelos pecados da humanidade. O mérito está na sua obra por ser ele Deus. Não foi o Pai que atribuiu mérito a essa obra. Ela é sumamente meritória, porque praticada pelo próprio Deus. Como é impossível a Deus morrer, ele se encarnou e, desde então, não se tem notícia de que o Verbo de Deus, o eterno Lógos, tenha agido fora da humanidade assumida.
Afirmou Dr. Martinho Lutero o seguinte, a respeito: "Pois nós, cristãos, temos que estar cientes do seguinte: quando Deus não está na balança, fazendo peso, caímos no abismo com nosso prato. O que quero dizer é isto: onde não se afirma que Deus morreu por nós, mas somente um homem, estamos perdidos. Quando, porém, a morte de Deus e "Deus morreu" pesam no prato da balança, este baixa e nós subimos, como um prato leve e vazio. No entanto, ele pode também subir novamente e saltar do prato. Ele, porém, não poderia estar sentado no prato a não ser que se tornasse homem igual a nós, para que se possa dizer: Deus morreu, o sofrimento de Deus, o sangue de Deus, a morte de Deus. Pois em sua natureza, Deus não pode morrer; agora, porém, que Deus e homem estão unidos em uma pessoa, é com razão que se diz: morte de Deus quando morre o homem que se tornou uma só coisa ou uma só pessoa com Deus" (Dos concílios e da Igreja).
Trataremos, na próxima postagem, dos prejuízos outros que temos quando queremos harmonizar a doutrina da humanidade de Jesus com sua divindade, de maneira que fique mais palatável à razão. Não perca!
Por ora, concluo que nós, luteranos, afirmamos que Santa Maria é mãe de Deus, assim como Santa Isabel e S. João Batista foram primos de Deus, assim como Pôncio Pilatos foi juiz de Deus, assim como os centuriões romanos foram os assassinos de Deus. Se algum escândalo houver no suposto mérito atribuído a Santa Maria, que seja descontado no demérito que confessamos em relação a Pôncio Pilatos e aos romanos.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



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