quarta-feira, 1 de março de 2017

COMO JEJUAR - PARTE 1

Estamos na Quaresma, que é um período da Igreja em que somos convidados ao silêncio. É um período em que deixamos que a Lei nos transforme, preparando-nos para a recepção do Evangelho, que é a Semana Santa. Agora seremos confrontados com nossa natureza má e procuraremos melhorá-la através do poder que o Santo Batismo nos deu, mas sem perder de vista a misericórdia de Deus. Quaresma é, portanto, um período de profunda transformação para quem crê. Mas só para quem crê! Para os descrentes, a vida segue igual, com suas muitas superstições e vontade de aparecer.
Hoje Deus nos indaga, por meio da Lei: "Você precisa de mim? Você está doente, é um pecador miserável? Ou está seguro em sua santidade, é um homem em todos os aspectos justo e decente, que não precisa de mim?" Também pergunta: "Um santo pensa, fala e age como você?"
Na Semana Santa, Deus não mais se voltará aos santos, àqueles que são justos, mas somente àqueles que, durante a Quaresma, constataram-se pecadores do pior tipo, transgressores de cada um dos dez mandamentos. Para esses contritos, Deus perguntará: "Você quer ser perdoado?"



E dentro dessa dinâmica da Quaresma, que é uma dinâmica da Lei, está a prática de jejuns, muito mal compreendida, muito mal vivenciada, porque trata-se de algo obrigatório. As normas em geral não passam pela apreciação do intelecto. Quando as normas se tornam preceitos, menos ainda, pois então há o temor do castigo. Então o jejum se torna obediência servil, algo irrefletido e, por isso mesmo, despropositado.
Os abusos cometidos com relação ao jejum são muitos. O maior deles é, sem dúvida, a obrigatoriedade. 
No contexto da graça e da fé, não é admissível que sejamos obrigados a alguma coisa. Tudo que fazemos a Deus - ou que envolve nosso relacionamento com ele - não deve ser compulsório, mas fruto do amor e da boa vontade. Todo sacrifício deve ser de louvor: "O que me oferece SACRIFÍCIO DE AÇÃO DE GRAÇAS, esse me glorificará" (Salmo 50:23). Também S. Paulo nos ensina: "Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus" (Romanos 14:6). Alhures: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Coríntios 10:31).
É por causa da obrigatoriedade que muitos outros abusos surgiram. É notório o abuso, por exemplo, de se substituir carne por peixe, sobretudo bacalhau, que é preparado de maneira magnífica, servido com vinho, muito mais saboroso que a carne que comemos cotidianamente. Sempre achei pitoresco esse tipo de jejum, exatamente por não ser um jejum. Isso é consequência da obrigatoriedade, porque a pessoa não deseja se abster de nada, é obrigada a isso e então busca maneiras de burlar a regra. Burlas semelhantes encontramos também entre muçulmanos e judeus, entre todos aqueles que são obrigados a jejuar. Lutero chamava esse tipo de "jejum" de "zombaria e ofensa a Deus"*.
Outro abuso é querer instrumentalizar o jejum para obtenção de graças. O jejum se torna um meio para obtenção de algo junto a Deus. Esse algo pode ser a cura, quitação de dívidas, a solução de um problema premente e até a salvação da alma. Então o jejum se torna uma moeda de troca, um ato meritório que faz de Deus nosso devedor. 
Trata-se de uma conduta pagã, pois é próprio dos pagãos presentear suas divindades com o intuito de obter algo delas. Devemos nos atentar à advertência de Jesus: "E nas orações não faleis muitas palavras, como os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por causa das muitas palavras" (Mateus 6:7). Quem adere a essa prática mostra não confiar na misericórdia de Deus, em sua promessa de nos dar generosamente tudo aquilo que lhe pedimos e precisamos, sem exigir nada em troca. Os deuses pagãos não são gratuitos e, por isso mesmo, os pagãos estão sempre lhes oferecendo algo em troca do que pedem. Isso não se aplica aos cristãos, cujo Deus revelou misericórdia e gratuidade infinita na pessoa de Jesus Cristo. 
Voltando-nos de novo ao Salmo 50, Deus nos pergunta: "Se eu tivesse fome, não to diria, pois o mundo é meu e quanto nele se contém. Acaso, como eu carne de touros? Ou bebo sangue de cabritos? Oferece a Deus sacrifício de ações de graças e cumpre os teus votos para com o Altíssimo" (versículo 14).
O último abuso que pretendo citar é o "jejum do pecado" ou a prática de obras de misericórdia como se fossem jejum.
O cristão deve lutar contra o pecado continuamente e a abstinência do pecado é uma obrigação. Há alcoólatras que decidem se abster de bebida alcoólica durante a Quaresma, incontinentes que resolvem se abster de farras e outras coisas do tipo. Essas pessoas precisam de conversão. Jamais poderemos chamar a cruz da renúncia de jejum, mas de mandato. O jejum está aí como um auxílio ao nosso mandato, mas ele não é o mandato.
Também, seguindo o mesmo raciocínio, não podemos chamar de jejum às obras de misericórdia. Isso a Igreja nunca ensinou, embora facilmente o equívoco surja na cabeça de muitos devido às prescrições feitas no confessionário. As obras de misericórdia são também mandatórias, é necessário que as pratiquemos o tempo inteiro e é pecado fugir delas. Novamente, o jejum vem como auxílio a que cumpramos essas obras, mas não devemos confundir uma coisa com a outra. 
Pode ser que alguém se proponha a visitar um orfanato toda sexta-feira, ao longo da Quaresma, e achar que, com isso, está se penitenciando. Bem, aquela penitência que é a cruz do cristão, que é necessário carregar e que caracteriza a vida cristã como um todo, tudo bem! Mas se essa penitência está sendo compreendida como jejum, está errado, pois as obras de misericórdia são um dever.
Na próxima postagem, iremos analisar um pouco sobre no que consiste o verdadeiro jejum.

(*) Comentário de S. Mateus 6:16-18 por Dr. Lutero, Obras Selecionadas  Volume 9, Editora Concórdia.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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