Quando S. Paulo afirma que não estamos debaixo da Lei (Romanos 6:14), que estamos mortos para ela (Romanos 7:6) ou que não estamos sob ela (Gálatas 5:18), não está aderindo ao antinomismo. Ele está declarando que a Lei não tem o poder de condenar quem crê em Jesus.
"Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Romanos 8:1). É um versículo das Escrituras muito apreciado por nós, cristãos, por seu conteúdo profundamente consolador. Nós o usamos para protestar contra tudo aquilo que nos amedronta e ameaça, mas aqui S. Paulo está a tratar especificamente da Lei. Ela não tem mais o poder de nos condenar a partir do momento em que cremos.
O antinomismo despreza a Lei. Nós não a desprezamos, pois isso seria um atentado contra a nossa humanidade, uma espécie de autofagia. Ela é muito útil para nos revelar o pecado, nossa necessidade contínua de redenção, e também para governar nossos sentidos, vontade e apetites. Sem Lei, o ser humano não é mais humano e sim uma besta. Dada a violência natural do gênero humano, seria impossível sua subsistência não fosse a Lei a confrontá-lo intimamente, a oprimi-lo e a gratificá-lo em sua consciência, a reger seu comportamento. É da Lei natural que procedem o apreço pela virtude, a condenação do vício, a educação das crianças e jovens, as honras e as punições. É função da Lei nos dizer: Faça isso e será bem-sucedido e honrado, feliz! Não faça isso, caso contrário será castigado.
Como qualquer sociedade humana, a Igreja convive com a realidade do pecado. Ela precisa de um agente que lhe mostre que é pecadora, para que não caia em presunção. Também precisa de um agente que lhe mostre o caminho da virtude e santidade. E esse agente é a Lei. Entretanto, a Lei encontra seu cumprimento no amor, fora do qual a Igreja se torna fundamentalista e imoral, considerando que não é possível a moralidade onde não há amor.
Que poder a Lei exerce sobre os homens? Como ela consegue governá-lo? A resposta é: de dois modos. Primeiro, ela recompensa quem a cumpre. Segundo, ela pune quem a transgride. Por natureza, o homem busca o que é bom e foge do que é mal. Essa inclinação humana é determinada pela Lei, pois o bem é a virtude e o mal, a desvirtude. O homem deixa de buscar o que é bom quando despreza a Lei e, com ela, sua própria humanidade, assumindo um comportamento animal, pois é do homem a busca do que é bom e a recusa do que é mal. Enfim, é pelo poder do mérito e da punição que a Lei nos governa.
O mérito e a punição da Lei primeiramente ocorrem numa esfera civil. Bustos, nomes de rua, prêmio Nobel e as mais diversas honrarias aos que são bons; advertência, multa, suspensões, cárceres e pena de morte aos que são maus. Em seguida, mérito e punição eternos, que o homem sabe que existem e, por isso mesmo, apega-se às religiões e dá um sentido religioso ao bem e ao mal.
É desse mérito e punição eternos que S. Paulo está a tratar. A Lei não tem o poder de auferir mérito eterno, nem de condenar. E exatamente porque não tem o poder de auferir mérito, é que ela não tem o poder de condenar. Pudesse a Lei dar méritos, ela teria o poder de condenar e estaríamos literalmente numa fria. Por isso mesmo, São Paulo combate seu poder de conceder méritos, pois isso implicaria em poder de condenar.
Quem salva é única e exclusivamente Cristo, sem a Lei. Se a Lei pode dar mérito eterno, devemos buscá-lo na pessoa de Cristo, nunca em nós. Igualmente, se a Lei pode condenar para sempre, devemos buscar essa condenação na pessoa de Cristo, que, sendo Deus, foi condenado em nosso lugar como o pior dos pecadores. De maneira que, para o cristão, a Lei está despojada de seu poder de justificar e condenar.
A Lei governa o cristão através de sua razão e na esfera civil ou temporal, mas não na esfera eterna, onde ele se encontra unido a Cristo. Toda vez que a Lei deseja nos recompensar temporalmente com honras e homenagens as mais diversas, com alegria devemos aceitar. Mas quando ela nos quer justificar e salvar, encher-nos de mérito perante Deus, devemos remetê-la a Cristo. Igualmente, quando a Lei quer nos condenar temporalmente, com vergonha devemos nos sujeitar a ela, pagando-lhe o que devemos: multa, indenização, cárcere, etc. Mas quando ela se aproxima querendo nos condenar ao inferno, devemos com ousadia dizer que ela está morta para nós. Ou que vá para Cristo e o condene!
Não devemos aceitar que a Lei nos assuste com o inferno, uma vez estejamos em Cristo, unidos a ele pela fé. Se cremos em Cristo, que isso nos baste! Não devemos aceitar que os adeptos da Lei nos ameacem com o inferno porque nós, de boa consciência, temos esculturas de Jesus e dos santos em nossos templos e lares, porque não observamos o domingo ou porque não pagamos o dízimo. Se a observância da Lei nos justifica e salva, como muitos pretendem, de nada nos serve Cristo. Entretanto, se a observância da Lei não nos justifica, que poder de condenar ela tem? Ela só pode condenar quem ela justifica. Os incrédulos, que procuram ser justificados e salvos pela Lei, serão um dia condenados por ela, mas isso não se aplica a quem busca a verdadeira justiça, que está em Cristo. Aprendamos com S. Paulo a dizer: "NENHUMA CONDENAÇÃO HÁ PARA OS QUE ESTÃO EM CRISTO JESUS" (Romanos 8:1).
Também na esfera civil, se você está pagando à Lei o que ela determina, mas crê e, por causa dessa fé, está com o coração contrito, não se esqueça que sua dívida é só temporal. Se a Lei quiser ir além deste mundo, mande-a para Cristo. Que ela se entenda com ele!
Quantos cristãos vieram a se converter nos presídios e continuam sendo ameaçados pela Lei. Eles não devem aceitar que a Lei os condene eternamente, mas só aqui, na esfera civil, temporalmente. O mesmo podemos dizer de verdadeiros cristãos que, por fraqueza, cometeram graves crimes e imoralidades, como furto, assassinato e adultério. Eles devem muito à Lei e é necessário - uma vez tenham acordado de sua sandice - que clamem a Deus por misericórdia e quitem pacientemente essa dívida, mas nunca devem se esquecer que essa dívida é temporal.
Imagem: Foto de uma paróquia da Igreja Evangélica Luterana Independente (SELK), cedida por um querido amigo, Leonardo Simões.
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