"Do pecado, porque não creem em mim" (S. João 16:9).
Deves saber (como foi dito) que ele [Cristo] não está falando, aqui, da vida e da conduta exteriores do ser humano, as quais o mundo pode julgar e condenar, mas ele se refere ao cerne em si, ou seja, ao coração humano, à fonte e ao manancial dos pecados principais, a saber, culto falso e desprezo a Deus, descrença, desobediência, luxúria má e resistência ao mandamento de Deus. Em resumo, é o que S. Paulo chama, em Rm 8[.7], de pendor para a carne e descreve como inimizade contra Deus e como sendo incapaz de se sujeitar à lei de Deus. Essa é a origem e a raiz de todos os outros pecados e é precisamente o lamentável dano herdado de Adão no paraíso. Se não existisse esse pecado, jamais haveria roubo, homicídio, adultério, etc. Agora, o mundo vê essas manifestações exteriores do mal; sim, ele se admira e lamenta que as pessoas sejam tão más, porém não sabe por que é assim. Ele vê fluir o filete de água e vê brotar em toda parte os frutos e as folhas da árvore do mal, porém não vê onde está a fonte e onde se encontra a raiz. Vai e procura remediar a situação, controlar a maldade e tornar as pessoas íntegras mediante leis e a imposição de punições. Mesmo que se tente, por muito tempo, vedar esse mal, [tais tentativas] de nada adiantam. É possível vedar o filete de água, mas é impossível estancar a fonte principal; é possível cortar fora os rebentos, mas, com isso, ainda não se extirpou a raiz.
Agora, tudo está perdido. Enquanto a origem, a raiz e a fonte do mal permanecerem no interior, não interessa quanto tempo se reprime, se melhora e se cura o exterior. Antes de mais nada, é necessário estancar e reprimir em um lugar, apenas para ver o mal rompendo e precipitando-se para fora em outros dez. O que se deve sanar é o fundamento; caso contrário, pode-se passar e aplicar pomadas e emplastros para sempre, mas a purulência e a inflamação continuam e apenas pioram. Resumindo: a experiência ensina, e o mundo precisa reconhecer que, inclusive, é impossível reprimir os crassos vícios e as maldades exteriores, não importa quão diligentemente se tente controlá-los e puni-los - como realmente se deve fazer. Muito menos, o mundo pode remover o pecado que é inerente à natureza e constitui o verdadeiro pecado principal, mas é desconhecido pelo mundo.
Por isso, esse pecado permanece sobre todo o mundo, e esse julgamento é proferido sobre toda conduta e todos os atos de todos os seres humanos na medida em que nasceram de Adão, sejam considerados bons ou maus, certos ou errados perante o mundo. E ninguém pode se excluir ou se jactar diante de um outro. Perante Deus, todos são iguais e devem admitir que são culpados e merecedores da morte e da condenação eternas. Todos também deveriam permanecer nesse estado para sempre, sem que qualquer criatura pudesse ajudar, se Deus fosse lidar conosco de acordo com nosso mérito e nossa justiça.
Agora, porém, em sua ilimitada bondade, ele se compadeceu dessa miséria e nos enviou do Céu a Cristo, seu amado Filho, para nos auxiliar e ajudar, para tomar sobre si nosso pecado e condenação e pagar por eles com o sacrifício de seu corpo e sangue e reconciliar Deus conosco. E Deus ordenou que se proclamasse isso em todo o mundo e que esse Cristo fosse apresentado a todas as pessoas, para que elas se apeguem a ele em fé se quiserem ser libertadas do pecado, da ira de Deus e da eterna condenação e alcançar o Reino de Deus, reconciliadas com ele. Dessa maneira, essa proclamação realiza duas coisas: em primeiro lugar, confronta todas as pessoas com o fato de que todas se encontram sob o pecado e a ira de Deus, estando condenadas pela lei, e exige que reconheçamos tal fato; em segundo lugar, ela mostra como podemos ser salvos disso e obter a graça junto a Deus, ou seja, através desse único meio, aceitando Cristo na fé.
Mas, apenas quando se prega essa mensagem, temos a manifestação do verdadeiro pecado, do qual se afirma aqui que faz toda a diferença, ou seja, que "não creem em mim". Pois o mundo não deseja ouvir tal pregação: que todos são pecadores diante de Deus, que a santidade humana de obras não tem qualquer validade diante dele, e que os seres humanos somente podem obter graça e salvação por meio desse Cristo crucificado. Essa descrença em relação a Cristo torna-se uma síntese de todos os pecados; ela conduz o ser humano para uma condenação da qual não pode ser resgatado.
Como se afirmou, a descrença é, certamente, o principal pecado da humanidade. Foi o primeiro pecado cometido no paraíso, e, decerto, também será o último de todos. Pois, quando Adão e Eva tinham a Palavra de Deus, na qual eram obrigados a crer e na qual também tinham Deus e a vida enquanto se apegavam a ela, eles foram tentados, pela primeira vez, com a descrença em relação a esta Palavra: "É assim que Deus disse", disse a serpente a Eva: "Não comereis de toda árvore do jardim?" [Gn 3:1]. Ali, em primeiro lugar, o diabo ataca sua fé, dizendo-lhes que abandonem a Palavra e não a considerem como Palavra de Deus. Pois ele não se interessa, primordialmente, pela mordida na maçã proibida, mas seu interesse reside em afastá-los da fé (em que viviam perante Deus) [e encaminhá-los] para a descrença, de onde, com certeza, seguir-se-iam a descrença e todos os outros pecados como frutos dela.
Mas, aqui, não se faz referência tão-só à descrença implantada por Adão na natureza humana, mas, claramente, à recusa de crer em Cristo, ou seja, à de reconhecer nosso pecado e de procurar e obter a graça através de Cristo quando se prega o Evangelho de Cristo. Pois, com a vinda de Cristo, ele aboliu com seu sofrimento e morte, diante de Deus, o pecado de Adão e de todo o gênero humano (isto é, a descrença e a desobediência anteriores), erigindo um novo Céu de graça e perdão, para que o pecado herdado de Adão não nos conserve, doravante, sob a ira e a condenação de Deus se crermos neste Salvador. A partir de agora, pois, aquele que é condenado não deve se queixar de Adão e do pecado herdado dele, porque a semente da mulher que haveria de esmagar a cabeça da serpente, de acordo com a promessa de Deus, veio, agora, pagou por esse pecado e removeu a condenação. Essa pessoa deve acusar a si mesma, pois não aceitou e nem creu em Cristo, que esmagou a cabeça do diabo e destruiu o pecado.
Portanto, cada qual deve acusar-se a si mesmo pela sua condenação; o motivo não é porque ele seja um pecador e mereça a condenação devido a Adão e à sua descrença anterior, mas, porque ele se recusa a aceitar Cristo, o Salvador, que remove nosso pecado e nossa condenação. É verdade que Adão condenou a todos quando nos levou consigo para o pecado e o poder do diabo. Agora, porém, que veio Cristo, o segundo Adão, nascido sem pecado, e removeu esse pecado, ele não mais, necessariamente, nos condena, caso eu creia em Cristo. Não. Através dele, deverei ser libertado do pecado e ser salvo. Se eu não crer, porém, então esse pecado e essa condenação, certamente, permanecerão, porque não aceitei aquele que pode me libertar deles. Sim, meu pecado e minha condenação se tornarão duas vezes maiores e mais graves, porque não quero crer nesse querido Salvador, que veio para me ajudar, e não quero aceitar sua redenção. Por conseguinte, tanto nossa salvação quanto nossa condenação dependem, agora, inteiramente, do fato de crermos ou não em Cristo. E a sentença que fecha e nega o céu a todos que não têm e não querem aceitar essa fé em Cristo já foi proferida de forma definitiva. Pois essa descrença retém todos os pecados, de modo que não podem ser perdoados, exatamente como a fé remove todos os pecados. Assim, sem essa fé, tudo, inclusive as melhores obras e conduta de vida de que o ser humano é capaz, é e permanece pecaminoso e condenável. Embora boas obras sejam louváveis em si e ordenadas por Deus, exatamente como todas as obras e conduta que se originam da fé de um cristão são agradáveis a Deus. Em resumo: sem Cristo, tudo está condenado e perdido; em Cristo, tudo é bom e está salvo. Por isso, inclusive, o pecado que foi herdado de Adão e ainda permanece na carne e no sangue não precisa nos causar dano ou nos condenar.
Mas não devemos entender isso como se nos fosse permitido pecar e fazer o mal desimpedidamente. Pois, como a fé traz remissão dos pecados, e como Cristo veio para remover e destruir o pecado, não é possível que seja um cristão crente alguém que vive, impenitente e seguro de si, abertamente em pecado e de acordo com seus desejos. Porque onde se vive tal vida de pecados, tampouco há penitência; onde não existe penitência, porém, também não há perdão de pecados e, por conseguinte, fé, que recebe o perdão de pecados. Por outro lado, quem tem fé nessa remissão resiste aos pecados e não segue seus desejos, mas luta contra eles até que esteja completamente livre deles. Embora não possamos ser libertados totalmente do pecado nesta vida, embora ele ainda permaneça, inclusive, nas pessoas mais santas, os que creem têm o consolo de que esses pecados são cobertos pelo perdão de Cristo e não são imputados para sua condenação, contanto que permaneçam na fé em Cristo.
Martinho Lutero, Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e Capítulo 16 de S. João, pregado e explicado. Martinho Lutero, Obras Selecionadas, Vol. 11, Editora Concórdia.
Os grifos são meus. Imagens extraídas da internet.
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