"A vida oculta do amor está no mais íntimo, insondável, e aí, então, numa conexão insondável com toda a existência. Assim como o lago tranquilo mergulha profundamente no manancial oculto, que nenhum olhar jamais viu, assim também se funda o amor de um homem, ainda mais profundamente, no amor de Deus" (Kierkegaard).
O objetivo de todo cristão autêntico é ser santo.
O cristão é santo e deseja ser completamente santo. Somente o santo se une ao
santo. Deus é santidade. Sendo assim, é sumamente impossível unir-se a Deus, senão
tornando-se santo.
Devemos, porém, todos os dias, perguntar a nós
mesmos: o que é ser santo?
Porventura é ter uma cara amarrada, afastar-se
do convívio social e vestir-se de maneira estranha? É defender causas sociais e
engajar-se politicamente em defesa de minorias? É manter um otimismo inviolável
e um sorriso inquebrantável nos lábios? Enfim, é tornar-se supra-humano ou uma criatura celestial? Não! Ser santo é algo muito mais difícil, laborioso,
penoso e sacrificante que erigir um monumento maravilhoso de si mesmo.
Ser santo é amar. Amar de verdade, com toda a seriedade que o espírito exige!
Num contexto de queda, em que estamos perdidos
dentro de nós mesmos, sem encontrar saída, parece fácil amar. Amamos a nós
mesmos o tempo todo, mesmo quando nos dirigimos ao outro. Toda a motivação para
o trabalho e para a superação das vicissitudes da vida reside em nós mesmos.
Nascemos, estudamos, trabalhamos, apaixonamo-nos, casamo-nos, temos filhos, construímos
uma história e morremos honradamente tão-somente por nossa própria causa. A
isso chamamos de amor natural. Entretanto, não é esse amor próprio que nos torna santos.
Hoje iremos falar sobre o amor cristão, aquele
que santifica, tão magnificamente exposto por Søren Kierkegaard, em sua obra
intitulada As Obras do Amor. Prepara-te para veres descascar e até
dissolver-se por completo esta máscara que faz de ti um homem probo e de vida
louvável.
O AMOR PAGÃO: O AMOR DA PREDILEÇÃO
O melhor amor mundano é aquele celebrado pelos
poetas: o amor romântico e a amizade. Dois tipos de predileção. Amamos quem nos
agrada e faz bem.
Se analisado a fundo, esse amor da predileção é
uma ocultação, por vezes muito engenhosa, do amor de si mesmo. O amante ama na
condição de ser amado. O amigo ama na condição de ser amado. A correspondência é
algo fundamental.
Quando o amor não é devidamente correspondido, a
pessoa que é objeto do amor é tida por egoísta, insensível e indigna do afeto
que lhe foi dedicado. Frequentes vezes esse amor da predileção transmuta em ódio,
ao ver que não só foi rejeitado, como também espezinhado.
O amor mundano é marcado pela melancolia do
fim. Por mais que a poesia busque imortalizá-lo com versos que arrancam
lágrimas, ele cessa com a morte. Também não é estável, pois tanto quem ama
quanto quem é amado não são estáveis.
Quer se confesse ou não, o amor mundano é
permeado pela desconfiança, visto que há o elemento da mudança.
Quando um mundano desiste desse amor e torna-se
cínico, todo o seu intelecto se volta a duvidar da autenticidade do amor que
lhe é dedicado. Então procura ilustrar-se por meio da sagacidade, que detecta
hipocrisia em toda e qualquer forma de amor. Para ele, quem não tem a mesma
argúcia em descobrir a falsidade que há nas relações humanas é um parvo. O
homem inteligente, antes de mais nada, não é enganado, pois pressupõe a falsidade
do amor.
O amor mundano – ou pagão – é o amor de si
mesmo celebrado como virtude. Citando os pais da Igreja, Kierkegaard afirma
várias vezes, na obra, que “as virtudes pagãs são vícios brilhantes”.
Se dissecarmos o amor pagão, como fez a espada
de Cristo, que veio para separar o “filho do pai, a filha da mãe, a nora da sogra”, nós veremos que nada mais é que o amor de si mesmo refletido no outro.
O indivíduo imediato é aquele que ainda não refletiu sobre si. É aquele que, como tal, está propenso à mudança. O indivíduo
imediato é, por exemplo, o bebê. Não sabe de si, não se ama, não ama ninguém,
apenas é.
“O imediato é como o que está fermentando, que justamente por isso
é chamado assim: precisamente porque ainda não sofreu nenhuma transformação, e
por isso de maneira alguma segregou de si o veneno que, contudo, é justamente o
que está ardendo naquilo que está fermentando” (Kierkegaard).
Em dado momento, o indivíduo toma consciência
de si. Essa consciência de si cria o chamado indivíduo refletido. Certo dia
Narciso se olhou nas águas límpidas de um regato e se apaixonou por si mesmo. O
indivíduo vê a si mesmo no espelho, toma consciência de sua existência, descobre que tem potencialidades,
passa a amar-se e torna-se complacente consigo mesmo. O primeiro amor de um
indivíduo é o amor de si. Nesse amor ele irá ficar para sempre, salvo alguém o retire
daí. Este é o resumo mais completo do chamado pecado original.
Assim ensina São Bernardo de Claraval:
“Ora,
seria natural e justo, antes de tudo, amar o autor da natureza: assim, o
primeiro e maior mandamento é este: ‘Amarás ao Senhor teu Deus’. Mas a natureza
é muito frágil e muito fraca para seguir tal recomendação. Ela começa por amar
a si mesma; é o amor que se chama carnal” (Tratado sobre o Amor de Deus).
No decurso da evolução da mente, o indivíduo,
enamorado de si mesmo, percebe que não lhe é suficiente. Então olha para
o lado e descobre a existência do outro. Então se aproxima daqueles que poderão lhe trazer
algo: companhia, conselhos bons, aconchego, prazer e aperfeiçoamento. Guiado
pelo amor de si mesmo, ele decide quem será o objeto de seu amor.
Mas, na verdade, ele não ama o outro. Ele ama a
si mesmo no outro. O outro é uma re-duplicação de sua individualidade.
Relembrando, o primeiro indivíduo é aquele que simplesmente é, o segundo indivíduo é fruto da reflexão e, portanto, uma duplicação do primeiro. O amado é a
re-duplicação. É aquele que reúne o que amo em mim e que não tem aquilo que
odeio em mim. É meu terceiro eu.
Entre mim e o outro está a predileção, como
determinação intermediária.
Quem, na adolescência, não sofreu a segregação do
amor mundano? Porém, todos nós, que fomos segregados, na mesma medida
segregamos também.
O amor mundano é essencialmente segregativo.
Ele é uma eleição. Quando diz sim a alguém, diz não ao resto. Por isso mesmo
não me agrada qualquer explanação sobre a predestinação divina, pois todas estão contaminadas por esse comportamento humano decaído. Não podemos entender a
eleição divina porque nossas eleições se baseiam numa entranhada autoestima.
Deus não elege assim.
Devemos também pensar: porque o mundo procura
tanto a igualdade entre as pessoas? Há algo verdadeiramente virtuoso nisso? Não, infelizmente.
Repito: “As virtudes pagãs são vícios brilhantes”. O mundo quer
igualar a todos para que todos possam ser amados, enquanto re-duplicação da
individualidade. Eu quero que a mulher seja tornada igual a mim para amar-me
nela, quero que os gays sejam tornados iguais a mim para amar-me neles,
quero que os negros sejam tornados iguais a mim para amar-me neles. Ninguém deve
ser diferente, porque o diferente desagrada. Então torno a pessoa igual a mim,
ainda que ela não seja, para que só assim possa amar-me nela. Se não for tornada igual a mim, não me será possível amar-me nela.
O problema é que não somos iguais. Se eu
estabelecer por condição a igualdade para amar alguém, então amarei a mim mesmo
nos outros de forma frágil e desconfiada. Terei de fazer vistas grossas a muita
coisa. Terei de me ater à superficialidade. Terei de me abster de encontros
profundos. Não poderei encontrar no outro o que há de obscuro em mim.
Tal é o amor mundano. Tão frágil, tão
superficial, tão efêmero e tão melancólico! Ainda assim é louvado como bem
supremo e enaltecido por meio das mais lindas honrarias.
O ESCANDALOSO AMOR CRISTÃO
O amor pregado por Jesus cai como uma bomba
atômica sobre a cidadela do mundo pagão. Visto pelo mundo, o amor cristão é mais desamor e
egoísmo que propriamente amor. Não há possibilidade alguma de conciliação.
Saímos então do mundo anímico (o mundo da racionalidade)
e adentramos o austero mundo do espírito, inaugurado pelo cristianismo.
Tudo, absolutamente tudo no mundo do espírito
soa escandaloso. Para o mundo pagão anímico, o amor cristão não deve ser
honrado, mas repudiado, enxotado, torturado e eliminado da face da terra, como
de fato o foi e é. Afinal, é louco, escandaloso e perigoso. Põe em risco as
famílias, a política e a sociedade. Nada no mundo pagão permanecerá de pé, caso
o conceito de amor cristão se propague, qual incêndio devastador.
Quem sabe até o incêndio de Roma, atribuído aos cristãos, não tenha sido um acontecimento profético?
"O caminho para o que é essencial no cristianismo passa por dentro do escândalo" (Kierkegaard).
Somente os cristãos honram seus cristãos,
homens santos, que de fato amaram. Talvez aí a grande relevância da honra
prestada aos santos. Quando a Igreja presta o devido louvor aos seus santos,
está louvando aquilo que lhe é caro: o amor espiritual. Por um mártir da Igreja o mundo jamais erigiria um palito de fósforo, em sua homenagem.
O primeiro aspecto trabalhado por Kierkegaard é
que o amor cristão é eterno. Enquanto o amor pagão está sujeito à mudança, à
instabilidade e ao fim, o amor cristão é perene. “Tu deves amar” sustenta o
amor cristão ao longo do tempo. Quando a paixão e a amizade perderem seu ardor,
tu deves amar. Quando o outro te parecer desagradável e inconveniente, tu
deves amar. Quando o outro não mais corresponder à tua afeição, tu deves amar.
Quando o outro, ingrato, pagar teu amor com duras ofensas, tu deves amar. O amor cristão é eternalizado pelo mandamento. Dentro da severidade do espírito,
todo cristão sabe que estará perdido para sempre se permitir que
as intempéries da vida terrena apaguem seu amor.
Obviamente, não é possível haver um mandamento
se não houver quem ordene. Portanto, o amor espiritual não é um sentimento, não
é uma fome, não é uma carência, não é natural. O amor espiritual é uma questão de
consciência.
A consciência iguala a todos. Não é comprada,
não é aprendida; está integralmente ao dispor do pobre e do rico, do culto e do ignorante, do
governante e do súdito. Cada qual sabe o que fazer, qual o seu dever, o caminho
que deve trilhar, a missão que deve cumprir.
“Tu deves amar”. O “tu deves” eternaliza o
amor. O “amar” respeita ao dever, à consciência, que cada cristão autêntico
sabe exatamente o que é. Talvez não leu Ética a Nicômano. Muitas vezes sequer
leu a Bíblia. Quiçá é um analfabeto. Entretanto, sabe o que deve ou não fazer, por uma questão de consciência.
Isso é um assombro ao mundo pagão, cujo amor é
determinado não pelo dever, mas pelo sentimento. Cuja maneira de amar é subjetiva,
tem regras próprias, e que, por não serem recíprocas, determinam angústia, ciúme,
incerteza, expectativas e cobranças. Se ponho minhas regras de amor como
determinação intermediária entre mim e o outro, é certo que irei pensar que amo
demais ou de menos, visto que não há reciprocidade de regras.
“Deus é que depositou o amor no ser humano, e é
Deus que deve determinar o que é amor em cada circunstância. (...) Neste ponto,
Deus e o mundo estão de acordo: em que o amor é o pleno cumprimento da lei; a
diferença está em que o mundo compreende por lei algo que ele mesmo inventa, e aquele
que consente nisto e se comporta de acordo é considerado amável” (Kierkegaard).
Um cristão autêntico pouco importa se ama demais
ou de menos, ele apenas segue a sua consciência e faz o que deve ser feito. Não
faz por um tempo, mas sempre, sob o risco de se perder eternamente, caso venha
a desistir.
O amor cristão é abnegado. É um amor marcado
pela renúncia.
Disse Jesus: “Se alguém quer vir após mim,
negue a si mesmo, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. Não irei amar o outro
como re-duplicação de mim mesmo. Devo, antes, negar a mim mesmo, reduzir-me a
nada. E a perfeição cristã consiste no aniquilamento do amor de si. O bom remédio, embora mais amargo que qualquer outro, direciona-se à origem do mal.
Enquanto as religiões orientais ensinam a negação
de si em direção ao nada, o cristianismo ensina a negação de si em direção a Deus. O único remédio contra o amor próprio, que perverte o homem, não é o nada, mas o amor
a Deus. Portanto, amar a si é amar a Deus.
Quanta interioridade isso não requer! Olhar para
dentro si, com o firme objetivo de encontrar Deus. Não mais minha predileção,
meu conforto, minha paz, meu prazer, minha segurança, pois a tudo isso renuncio para
desfrutar Deus. Deus é o objetivo de minha severa autonegação.
Portanto, a primeira renúncia cristã é ao amor
próprio, ao amor de si. Ninguém deverá viver para mim, para minha satisfação,
para minha alegria, para meu bem-estar, para meu deleite, para me provar dia após dia o quanto sou culto ou o quanto sou generoso. Não! O amor espiritual está esvaziado
do “eu”. Amar a si é amar a Deus, pois o si foi sacrificado.
Em seguida, o cristão deve renunciar ao amante e
ao amigo. Sua missão é amar ao próximo.
Diferentemente do amor ao amante e ao amigo, de
quem recebemos sobeja gratificação, o próximo é aquele que não retribui
absolutamente nada. Todo aquele que pode te pagar de alguma maneira o bem que te
fez, ele não é teu próximo. Entretanto, o conceito de próximo, num primeiro
momento restritivo demais, torna-se depois amplo ao extremo. O próximo é todo homem,
indistintamente.
"O próximo é todo e qualquer homem; pois pelas diferenças ele não é o teu próximo, nem mesmo pela igualdade contigo no interior da diferença em relação aos outros homens. Pela igualdade contigo diante de Deus ele é o teu próximo, mas esta igualdade absolutamente todo homem tem, e a tem incondicionalmente" (Kierkegaard).
O amor espiritual dá sem a pretensão de receber.
Ele age guiado somente pela consciência e não aguarda paga de espécie alguma.
Pode ser que o próximo que tu beneficiaste venha a louvar-te, presentear-te e favorecer-te.
O próximo é, inclusive, teu amante e teu amigo, que tantos favores te prestam todos os dias.
Porém, aquele que ama com amor cristão não ama em vista da gratificação, ainda
que a gratificação seja provável. O cristão autêntico exercita-se na mais
absoluta indiferença quanto ao que poderá reaver quando se doa em amor. Assim, vai transformando em próximo a todos: desde os mais chegados aos desconhecidos, quando intimamente decide agir de boa consciência, sem esperar recompensa alguma.
Se tu esperas de teu próximo alguma coisa, por mínima que seja, então ele já não é teu próximo. Persistes ou decais ao amor pagão.
O abnegado amor cristão vai mais longe ainda.
Depois de ter renunciado ao “eu”, ele agora renuncia ao “tu”, enquanto “tu”.
Embora o cristianismo ensine que se deva amar
ao próximo, esse próximo não tem um rosto. O próximo é todo mundo; não tem nome nem
endereço. O próximo já não é mais, propriamente, o "tu". O "tu" tem um rosto e é objeto de minha predileção.
Assim sendo, o cristão não ama o próximo enquanto próximo. Ele ama a Deus por meio
do próximo. Guiado pela consciência, ele faz tudo pelo próximo, sem esperar
nada do próximo, porque seu fim não é o próximo, mas Deus. Deus é o fim. E se deseja de Deus a paga, ainda não evoluiu o suficiente. Porque, para os verdadeiros santos, Deus em si mesmo é a recompensa.
Em suma, o cristão exercita-se em renunciar ao "eu" e ao "tu". Só não renuncia a Deus. E, assim, cria-se o ambiente propício ao florescimento do amor espiritual. Um amor que passou pelo crivo da eternidade.
"O homem começa, então, por amar a si mesmo, porque é carne e não pode gostar senão do que se relaciona com ele; depois, quando vê que não pode subsistir por si mesmo, coloca-se a buscar a fé e a amar a Deus como um ser que lhe é necessário. Não é senão em segundo lugar que ama a Deus; e ainda não o ama senão por si, e não por ele. Mas tão logo pressionado por sua própria miséria, começa a servir a Deus e a se aproximar dele, pela meditação e pela leitura, pela prece e pela obediência, chega pouco a pouco e se habitua, sem perceber, a conhecer Deus, e, por consequência, a achá-lo doce e bom: enfim, após ter apreciado o quanto é amável, eleva-se ao terceiro grau; então, não é mais por si, mas é por Deus mesmo que ama a Deus" (São Bernardo de Claraval, Tratado sobre o Amor de Deus).
O desapego que o cristianismo ensina em relação
à família, ao matrimônio, às amizades, aos valores do mundo e ao Estado sempre foram chocantes ao
mundo. Muitos santos abdicaram da convivência familiar, do matrimônio e de amigos. Recusaram
curvar-se perante leis estatais, desprezaram honrarias e tudo o que ao mundo é caro. Por causa desse desapego, que por vezes assume a forma de franco desprezo, os cristãos são incompreendidos e até odiados.
Aos olhos do mundo, o cristão é tímido, ingênuo, tolo,
sem ambição e medíocre, visto que renunciou ao amor de si, que o mundo transmutou em virtude e lhe deu o belo nome de "magnanimidade". Também é frio, egoísta,
desafeiçoado e ingrato, porque renunciou à predileção. É traidor de sua família, de sua religião e de sua pátria. É uma ameaça a todos, visto que provê aos inimigos comuns. Ao invés de estar recolhido junto aos seus, protegendo-os, decide deixá-los para arriscar-se nas mãos de quem o odeia, adentrar lugares perigosos e desperdiçar a própria vida por causas vãs. Tudo isso porque renunciou à recompensa que se é obtida dos amantes e dos
amigos. Tudo isso porque decidiu amar seu próximo.
Ao cristão, porém, nem o próximo consola,
porque não o ama enquanto tal. Ama a Deus por meio dele. Não quer seus abraços e outros gestos de recompensa. Por assim dizer, não quer perverter seu próximo, fazendo dele um
amigo ou amante.
O cristão autêntico padece conflitos íntimos e
exteriores. Só encontra paz quando, em sua consciência, se vê diante de Deus, o destino último de seu amor.
"Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama o seu filho ou a sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim" (S. Mateus 10: 37-38).
No entanto, é o único que pode amar neste
mundo. Ama de verdade porque não está preocupado consigo mesmo, com sua reputação, com elogios e louvores. Recusa qualquer plateia.
Ama de verdade porque
ama o outro da forma como ele é, não segundo suas expectativas. Não teme
encontrar no outro o que teme em si. Não deixa de amar, porque está preso ao
amor por uma questão de consciência. Não deixa de fazer o bem a quem quer que
seja, ainda que ludibriado. O seu amor esteve a serviço do próximo, mas
não era o próximo o destino de seu amor, mas Deus. E Deus a ninguém ludibria.
O amor cristão supera o amor próprio, causa de
todo o tormento humano. Por isso é livre. Só pode ser livre quem está fora do
cárcere de si.
Que melhoria o cristão autêntico busca ao seu próximo? Para o cristão autêntico, melhorar o próximo significa aproximá-lo de Deus. Nenhum gesto seu busca atender somente a uma necessidade temporal. Há um elemento eterno oculto em todos os seus atos, que é trazer todos ao amor de Deus. Justamente por isso é que ninguém deve ficar de fora. Pode ser que o mais necessitado do amor de Deus é aquele que está longe, bem longe do âmbito da predileção.
"Pois o crístico é: amar a si mesmo de verdade consiste em amar a Deus; amar uma outra pessoa de verdade consiste em, com todo e qualquer sacrifício (e também o de vir a ser odiado), ajudar a outra pessoa a amar a Deus ou ajudá-la em seu amor a Deus" (Kierkegaard).
O AMOR AOS MORTOS COMO EXEMPLO DE AMOR VERDADEIRO
Mais ao fim da obra, Kierkegaard elogia o amor
aos mortos.
Um morto não pode jamais retribuir ao amor de
ninguém. Nunca te sorrirá, nem falará bem de ti, nem te pagará o afeto
com mais afeto. Um morto permanecerá incólume perante tuas lágrimas, perante tua dor, perante tua saudade, perante tua fidelidade, como se tais não existissem. Quem é fiel em amar um morto sabe o real significado de amar o próximo.
Kierkegaard conclui que não há amor maior que
permanecer fiel a um defunto. Em seguida, traz esse amor dedicado aos
defuntos como exemplo para nossas relações. Em como devemos amar ao próximo
como próximo, como aquele que jamais poderá retribuir. Como aquele que se
esquecerá de ti logo em seguida. Como aquele que, ingrato, poderá voltar a mão contra ti e ferir-te.
Só então teu amor terá atingido a eternidade, pois tu crerás que Deus recebeu de ti e não se esquecerá jamais.
"Deus
é amor, e quando por amor um homem esquece a si próprio, como Deus o
esqueceria! Não: enquanto aquele que ama se esquece de si mesmo e pensa
em outro, Deus pensa nele. O egoísta se agita, ele grita e faz muito
barulho e insiste em seu direito para assegurar-se de não ser esquecido -
e contudo é esquecido; mas o que ama e esquece a si próprio é recordado
pelo amor. Há alguém que pensa nele, e daí resulta que o amoroso recebe
aquilo que ele dá" (Kierkegaard).
Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.